O rosto de Deus

UM ROSTO QUE BRILHA NO HORIZONTE DO MUNDO: 

BREVE ELUCUBRAÇÃO SOBRE O LIVRO O ROSTO DE DEUS DE ROGER SCRUTON

 

Em O Rosto de Deus o filósofo conservador inglês Roger Scruton sugere uma investigação sobre o sentido oculto do rosto, aquele lugar que parece ser iluminado por uma consciência transcendente. 

Somos humanos porque possuímos um rosto que é translúcido e demostra para o outro um algo mais que excede as barreiras da condição e do intercâmbio biológico. 

Neste rosto parece existir um contrato moral inato, mas que entretanto não é impossível de se perder, já que, muito embora exista uma presença autoconsciente e subjetiva em cada um de nós, estamos inseridos numa realidade onde os valores morais, que nascem da razão e do sentido interiores, parecem se dissolver a cada dia diante da tentação objetificante do mundo, um mundo sem rosto, onde a intenção, a liberdade e a emoção foram varridas.

Os animais não possuem um rosto onde um “eu” autoconsciente de ser dialoga com outro “eu” autoconsciente de ser. Um rosto representa a forma e a imagem exterior da alma, é uma lâmpada acesa em nosso mundo pelo sujeito que está oculto.

O rosto divino 

O autor identifica que o fenômeno da crescente cultura ateísta não é apenas um fenômeno intelectual que expressa uma descrença em Deus, mas também um fenômeno moral, que envolve um distanciar-se de Deus, considerando que Deus tem uma relação íntima até com aqueles que o rejeitam. Assim, Deus é inevitável ou evitável por meio da criação de um vazio que se abre quando destruímos o rosto, não apenas o rosto humano, mas o rosto do mundo. Para tanto, há uma motivação por trás da cultura ateísta da nossa época e o desejo que escapa do olho que julga é um deles. Escapa-se do olho que julga apagando o seu rosto.

Ponderando com a argumentação do polímata Avicena  Scruton infere que o reconhecimento e a valorização do rosto divino são o alicerce da construção da comunidade humana. Neste processo de construção a comunidade procura uma unidade com o divino, Deus, -um ser necessário e verdadeiro em si mesmo, -visto que a condição de criatura é contingente- falsa em si mesma e, portanto, deve sua verdade a outras coisas que estão fora de si. (AVICENA. Apud.: GOODMAN: 2005.)

Nesta lógica, a relação com Deus de nenhum modo poderá ser conhecida ou refutada pelo progresso científico porque a relação com o divino não se estabelece por meio de um “por quê?” da explicação e sim por meio de um “por quê?” da razão e do sentido, conceitos que advém dos aspectos subjetivos interiores de cada indivíduo.

Em geral, a postura da comunidade diante do divino é indagar o “por quê?” da finalidade, do sentido e da causa e treinar a disciplina da aceitação. É a partir deste exercício interior que se origina a visão de mundo religiosa, que é traduzida na ideia de que se uma crença oferece filiação precisa ser protegida de alguma maneira. Neste sentido, a defesa da crença é a defesa da comunidade. 

Afinal, a autoconsciência humana é inobservável pela ciência porque esta situa os seres humanos inteiramente no mundo dos objetos, reduzindo-os a animais cujo comportamento pode ser enquadrado e explicado por uma combinação de psicologia evolutiva e neurociência. No mundo dos objetos o sentido de liberdade não pode ser encontrado sem a presença de um “eu” que é impossível de ser esquadrinhado pela investigação empírica.

Da perspectiva de algum lugar

A realidade divina de fato é compreendida pela comunidade religiosa não por meio de especulações metafísicas a respeito dos fundamentos do ser, mas por meio da comunhão com nossos semelhantes. É como se a comunidade religiosa adaptasse a perspectiva de lugar nenhum, que é a perspectiva de Deus, – o ser necessário, uno, que não pertence à espécie nenhuma por não poder ser circunscrito por classificação nenhuma- à perspectiva de algum lugar, que é a perspectiva humana.

Aprofundando os três termos essenciais: “eu”, “você” e “por quê?” o filósofo se dispõe a construir uma teoria geral do rosto: o rosto da pessoa, o rosto do mundo e o rosto de Deus.

O mundo é para nós um desafio onde devemos prestar contas, justificar nossa conduta e falar a verdade ao revelar nossos estados de espírito e nossos objetivos para a comunidade que nos observa de uma perspectiva acima de nossos projetos, esperando que façamos nossa parte. Vivemos diante dos olhos do julgamento, olhos que também são os nossos. 

Somos animais naturais, possuímos um corpo perecível e material composto por partículas atômicas, estamos conscientes e nos expressamos no mundo dos objetos, não obstante apresentamos algo como uma luz autoconsciente que parece nos encaminhar neste mesmo mundo dos objetos. 

Esta perspectiva subjetiva presente em nossa natureza parece se encontrar no horizonte do mundo físico e das relações instintivas de um organismo biológico. Deste lugar nasce um sentido profundo de responsabilidade, daí o nosso anseio por justiça, por uma vida sem culpa, por uma vida devidamente guiada. 

No tawhid islâmico a presença de Deus se torna uma presença ubíqua em que estamos todos absorvidos. Deus é único, mas inefável e impessoal. Por outro lado, na tradição judaico-cristã, Deus tem um ponto de vista pessoal com cada criatura, sua presença divina se assume diante da presença humana. Ele não existe fora do mundo, dentro daquela visão de lugar nenhum que Ele não pode compartilhar, mas se move no mundo num lugar que é seu próprio. 

A liberdade, a ação e a responsabilidade são propriedades da pessoa, gerando a raiz da vida moral: o “eu” e o “outro”. Somente a ideia do “eu” traz a do “outro”, que é como “eu”. 

No silêncio da sarça ardente a voz de Deus é revelada para Moisés. Em sua unidade de pessoa inteira Deus é livre para dizer “eu” diante do outro. Então a aliança se faz quando o Criador diz a Moisés que é, com aquele tipo de unidade que você descobre em si mesmo, quando está alerta e dirigindo-se a outro. 

Esta unidade transcendental não está preocupada em lhe dizer a que espécie nós pertencemos ou que papel nós temos no mundo dos objetos, mas ela o identifica como um ponto de vista único sobre o mundo dos objetos. Neste sentido, Deus não se rebaixa ante a natureza humana, mas parece nos elevar à sua natureza divina.

Deus é todo Ele, sem dualidades, sem ligação com o mundo dos objetos, inteiramente livre, portanto, deste mundo. Nas palavras de Scruton: “Você pode procurar liberdade no mundo dos objetos e não encontrará. Não porque ela não esteja lá, mas porque ela está obrigatoriamente associada à perspectiva em 1ª pessoa e à vista de algum lugar da criatura capaz de dizer: eu.” (SCRUTON: 2015, 76) E é por isto que o próprio Deus diz na sarça ardente: “Eu sou.” “Eu sou aquele que é”. “Diga aos outros: Eu sou me enviou até vós.” Ali Deus se apresenta para Moisés como um agente, um eu, mesmo que Moisés não possa ver o seu rosto. E sela-se uma verdadeira e sincera aliança entre eu e você, o Criador e sua criação, uma relação medida pelo sentido de liberdade. 

Deus não busca as pessoas por meio da coerção e da força, mas por meio de um acordo alicerçado na presença do ser, este lugar que Lhe confere uma posição como sujeito no mundo das coisas, que é o mesmo lugar que Ele nos oferece, o lugar onde nos conhecemos porque podemos nos referir espontaneamente a nós mesmos, identificamos nossos estados mentais e nos situamos em relação aos outros. 

Não obstante, todas essas capacidades implicam atos mentais que dependem de uma linguagem pública compartilhada onde é possível aquele diálogo livre em que assumo minha presença diante da sua presença.

O sentido de liberdade é o cerne desta aliança. Deus e nós assumimos responsabilidades e somos agentes livres: “Eu para você e você para mim”, pois o ser livre que pode dizer “eu”, deve reconhecer a existência igual do outro. Por isto o mandamento original de amar a Deus sobre todas as coisas contém o segundo mandamento de amar o próximo como a si mesmo. Deste ponto apreende-se a diferença crucial entre o ser consciente e o ser autoconsciente: ser um “eu” não é uma questão de consciência, é antes uma questão de assumir a responsabilidade pelas próprias ações, de reconhecer aqueles longos feixes de luz que foram lançados no passado e serão lançados no futuro pelo “eu” que brilha no agora.

Por meio da perspectiva da comunidade, de nosso diálogo com os outros é que compreendemos como aparecemos no mundo, pois aquilo que somos para nós mesmos reflete minuciosamente aquilo que somos para os outros. À vista disso, quando se aprende a enxergar a si próprio como os outros nos enxergam temos mais controle de nossa situação de ser no mundo e aprendemos o que somos deixando nossa marca naquilo que não somos. 

O “eu” molda-se como um outro aos olhos de todos os outros e assim toma consciência de si como sujeito que age livremente num mundo que compartilha na vida construída em sociedade.

Nas formas extremas de êxtase, religiosas e sexuais o rosto é eclipsado enquanto o eu é totalmente expulso dele. Detalhe do Êxtase de Santa Teresa, de Lorenzo Bernini.

Sujeitos não são objetos

O sacrifício, movido pela liberdade do “eu”, só é possível para quem distingue o “eu” e o “outro”. A ação do sacrifício que parte de um movimento interior em busca de uma liberdade transcendente confere ao sujeito um estatuto metafísico particular. O mundo parece de um certo jeito para o ser autoconsciente e este parecer define uma perspectiva única para este sujeito que não é capaz de ser descrita empiricamente, posto que a descrição científica não pode conter a perspectiva particular e não contém palavras como “aqui”, “agora” e “eu.” E ainda que a verificação empírica pretenda explicar o modo como as coisas parecem, faz isso dando uma teoria de como elas são.

No fim de contas, o sujeito é em princípio inobservável pela ciência, não porque ele exista em outro domínio, mas porque ele não é parte do mundo empírico. Ele está na margem das coisas, como um horizonte, e nunca poderia ser apreendido “do outro lado”, o lado da própria subjetividade, já que há um abismo metafísico intransponível entre o objeto humano e o sujeito livre com que nos relacionamos como pessoa.

Um espírito autoconsciente revela em seu rosto uma lâmpada acesa, esta lâmpada é iluminada pelo sujeito que está oculto. O rosto humano é translúcido e brilha no mundo dos objetos com uma luz que não é deste mundo, a luz da subjetividade. Este processo de se tornar plenamente individual e autoconsciente implica em vir a enxergar a mim mesmo como os outros me enxergam, como um “você” no mundo dos outros, assim como um “eu” no mundo que é meu. (HEGEL: 1977, pp.111-118)

O rosto sem alma de Narciso, o mito. Pintura de Caravaggio.  

O rosto sem alma 

É pela visão de seu próprio rosto que as pessoas têm uma ideia daquilo que são para os outros e do que elas são como outros. No mito de Narciso o protagonista responde a si mesmo como se fosse outro ao se defrontar com o próprio rosto refletido na água. Até um certo momento de sua vida ele tinha estado fechado em si mesmo, incapaz de reconhecer os outros, possivelmente por medo de amar, se entregar e passar por um sofrimento hipotético. O velho Tirésias profetizara que Narciso teria vida longa desde que “não se conhecesse.” Narciso vê-se olhado pela primeira vez ao vislumbrar seu próprio rosto refletido e então ele se reconhece como um outro pela primeira vez. Narciso se apaixona por aquele belo rosto que viu refletido na água, porém o objeto de seu amor foge quando ele se move assim como Narciso fugiu de todas as possiblidades de amor e troca.

A fuga do “eu” e da alma também é tema do romance O Retrato de Dorian Grey de Oscar Wilde. Na estória de Wilde o belo e jovem aristocrata vitoriano vive na crença de que seja possível viver a vida sem sacrifício e sem entrega, numa danação hedonista. E assim faz um pacto diabólico com seu próprio retrato e passa a viver uma vida sem limites morais, fazendo de seu corpo um simples objeto inconsciente perdido no mundo das coisas. Todos os seus vícios são transmitidos ao retrato que ao longo dos anos passa a mostrar um rosto deformado representando sua alma corrompida. Dorian já não possuía mais um rosto, pois não possuía mais uma alma.

O rosto humano anuncia o corpo e o precede como um emblema, ele ocorre no mundo dos objetos como se estivesse iluminado por trás tornando-se alvo e expressão de nossas atitudes interpessoais principalmente por meio do olhar e pela abertura de um sorriso verdadeiro como em Paraíso Perdido onde John Milton ao descrever o amor entre Adão e Eva registra o poder do sorriso na correspondência humana: “da razão correm sorrisos/negados às bestas, que são o alimento do amor.” (MILTON: 2018.)

O sorriso é como uma bênção que uma alma confere a outra quando brilha como o “eu” inteiro num momento de autodoação. Por isso o sorriso premeditado e deliberadamente ampliado não pode ser considerado de modo algum um sorriso, mas antes uma máscara. 

O sujeito corporificado é aquilo que vemos no rosto, isto fica muito claro no olhar de amor presente nas emoções sexuais: é você que eu quero, e não o tipo ou padrão. Essa intencionalidade individualizante nasce do fato de que o outro é desejado como sujeito corporificado e não como corpo, por este motivo quando as atenções sexuais tomam a forma de fome elas se tornam profundamente insultuosas já que o desejo propõe uma relação entre sujeitos forçando as duas partes a serem responsáveis por si mesmas, a expressão da liberdade do “eu” que busca a liberdade em “você”. É por isso que o estupro é um crime tão sério: é uma invasão da liberdade da vítima, em que o sujeito é forçado ao mundo das coisas.

A renúncia por amor e o sentido do sacrifício

Para a pessoa inserida na comunidade religiosa a jornada para o exterior, para o mundo, para a alienação da alma exige uma jornada adiante, isto é, para a redenção. Nas palavras de Santo Agostinho: “Nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti, Senhor.” (Confissões1,1: 2017.)

A luta sem fim do “eu” que julga com o “eu” que é julgado parece ser a maneira de vida religiosa, essa disputa onde buscamos ser restaurados. De tal modo, a culpa, a vergonha e o remorso são o resíduo de nossos erros e o sinal de que temos a liberdade de cometê-los. Mas eles nos dirigem para uma forma superior de reconciliação em que nossa culpa pode ser reconhecida e perdoada de modo abrangente por meio do caminho da piedade e da obediência, caminho que é percorrido para se chegar até a unidade com o cosmos, um lugar que é possível de ser alcançado por meio da purificação e da redenção da alma e que nos levaria a uma emancipação das coisas deste mundo e a uma identificação com um “Eu Sou” transcendental.

A experiência do sagrado, portanto, não precisa de nenhum comentário teológico para nos invadir pois se trata de uma experiência primitiva, básica como a dor, o medo e a exultação, que se denota na precipitação inevitável da autoconsciência, do vislumbre do rosto de Deus, que por sua vez nos compele a viver para sempre na margem das coisas, presentes no mundo, mas também apartados dele.

Então onde está o rosto de Deus para aquele que acredita em sua presença real no meio de nós? Encontra-se essa presença em valores como o sacrifício e a renúncia pelo interesse alheio. Neste estado total de doação em que o “eu” realiza uma doação do próprio ser não há mais qualquer dualidade na pessoa ou relação com os objetos. Neste estado o “eu” aparece completamente e as criaturas ficam face a face com Deus, igualando-se à sua natureza.

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